Texto: Pr. Anderson de Paula
Revisão: Irmãos Jefferson G. Acunha-Acuña e Thiago Fidelis
Um dos argumentos mais usados para
tentar provar que Armínio era de fato um calvinista é o elogio feito a Calvino na
carta endereçada ao seu amigo burgomestre[i] Sebastian
Egbertsz[ii].
É muito fácil achar vários blogs e sites que entendem ser essa uma prova cabal
da “calvinicidade” de Armínio, pois alguns chegam a dizer o seguinte:
“Arminianos, leiam Armíno...”, antes de citarem o texto da carta supracitada.
No entanto, será que tal argumento procederia? Teria Armínio considerado a
Calvino como sendo teologicamente infalível? Para vários blogs e sites
calvinistas a resposta é sim! Nós, porém, discordamos disto e vamos mostrar que
é bem fácil refutar tal alegação. Vamos começar apresentando a maneira como estes
blogs e sites citam a referida carta, como os maiores especialistas em Armínio
entendem o seu elogio a Calvino, fazendo depois uma análise deste texto de
Armínio.
1. Como o texto é usado
em blogs e sites calvinistas?
Para que o leitor possa entender
melhor como é apresentado o texto de Armínio por alguns sites e blogs
calvinistas, é necessário conhecê-lo antes integralmente, a saber:
“Longe
disso, após a leitura da Bíblia, que eu vigorosamente inculco, e mais do que
qualquer outra (como toda a Universidade, de fato, a consciência de meus
colegas testificará), eu recomendo que os Comentários de Calvino sejam lidos, a
quem eu louvo em termos mais elevados do que o próprio Helmichius[iii],
conforme ele me confessou, sempre fez. Pois eu afirmo que na interpretação das
Escrituras Calvino é incomparável, e que seus comentários devem ser mais
valorizados do que qualquer coisa que nos foi passado nos escritos dos Pais.
Tanto é assim que eu lhe concedo um espirito de profecia no qual ele permanece
distinto a cima dos outros, a cima da maioria, de fato, a cima de todos. Suas
Institutas, no que diz respeito aos lugares comuns (loci communes), eu declaro
que seja lida após o Catecismo como uma explicação mais abrangente. Mas aqui eu
acrescento com discriminação, conforme os escritos de todos os homens devem ser
lidos[1].”
Tendo conhecimento da citação de
Armínio, poder-se-á facilmente ver que o uso desta citação em blogs e sites
calvinistas não representa a totalidade do pensamento arminiano sobre os
escritos de Calvino. A fim de defenderem os seus pontos de vista, certos blogs[iv] apresentam
a citação acima de forma parcial, a saber:
"Eu
os aconselho a ler os comentários de Calvino, a quem confiro maior louvor do
que Helmichius [um teólogo holandês (1551-1608)] jamais fez, como ele próprio
me confessou. Pois eu digo a eles, que seus comentários devem ser mantidos em
maior estima, do que tudo que nos é entregue nos escritos dos Pais Cristãos
Antigos: De forma que, em um certo eminente Espírito de Profecia, dou a
proeminência para ele além da maioria dos outros, de fato além de todos
eles."[2]
Ao citar o texto de Armínio de forma
parcial, passa-se a impressão de que Armínio estaria elogiando demasiadamente a
Calvino, levando-se a crer de que Armínio não teria feito nenhuma ressalva ou
advertência à leitura indiscriminada de Calvino. Note-se que a parte ocultada
do texto foi a seguinte:
“Suas
Institutas, no que diz respeito aos lugares comuns (loci communes), eu declaro
que seja lida após o Catecismo como uma explicação mais abrangente. Mas aqui eu
acrescento com discriminação, conforme os escritos de todos os homens devem ser
lidos.”
Pode-se,
então, perguntar qual o motivo de haver-se ocultado justamente a conclusão do
pensamento de Armínio? Ora, pela sua conclusão fica claro que ele não concordava
com Calvino em tudo e tampouco o considerava infalível ou superior aos demais
teólogos de renome, tendo aconselhado que se tomasse cuidado na leitura de suas
Institutas. A resposta mais provável é que assim o teriam feito para embasar o
argumento de que Armínio concordava com Calvino, ao qual considerava superior
aos demais, não havendo discordância alguma entre ambos os teólogos.
2. A visão dos
especialistas em Armínio sobre o referido elogio
É
muito importante ressaltar que os maiores especialistas em Armínio discordam
que aquele elogio torne Armínio calvinista, afirmando que, na verdade, Armínio
era ambivalente com respeito a Calvino, pois não concordava com tudo quanto o
mesmo havia escrito. Armínio ensinava realmente que Calvino era um ótimo
comentarista e nada mais. Deve-se considerar que naquela época ainda não existiam
muitos comentários bíblicos, o que pode ser considerado como sendo um dos
motivos de tal ambivalência. Armínio indica os escritos de Calvino, mas com
ressalvas. É muito claro que, para Armínio, João Calvino deveria ser lido como
qualquer homem deve ser lido, haja visto que todos os homens poderão errar (e
de fato erram, a não ser que tenham escrito algo sob inspiração divina, como
havia sucedido com os autores bíblicos). Este é o entendimento de Stanglin e
Thomas H. Mccall acerca do texto em questão:
“Em
uma carta de 1607, Armínio nega a acusação de que ele recomenda a seus alunos
que leiam os jesuítas em vez de lerem os autores reformados. Antes, ele
reivindica que indica os comentários de Calvino acima de todas as outras obras
sobre a Bíblia, pois elas contêm um “certo espírito de profecia”. Além disso,
as Institutas da Religião Cristã de Calvino deveriam ser lidas após o Catecismo
(de Heildeberg) como uma explicação mais plena dela. Ele então acrescenta que
todas as obras de Calvino, assim como todas as obras humanas, devem ser lidas
com cautela. Armínio é ambivalente em seu endosso de Calvino. Seu respeito
pelos comentários de Calvino está claro. Ao mesmo tempo, embora ele recomende
as Institutas, ele não reivindica concordância total com todo seu conteúdo, mas
apenas recomenda o livro especificamente como um suplemento para o catecismo”[3]
De
fato, estes autores contextualizam a carta, demonstrando que Armínio realmente indicava
a leitura de Calvino, porém, afirmam que ele não concordava com tudo quanto
Calvino escrevia, recomendando uma certa cautela ao ler-se as suas Institutas. Nota-se
que Armínio sabia reter o que existia de melhor em cada escritor e rejeitar o
que lhe parecesse contraditório às Escrituras. Pode-se comparar este elogio ao elogio
que Armínio fizera a Tomas de Aquino, sobre quem dissera o seguinte:
“... cuja habilidade e erudição eu tenho a
mais elevada opinião, apesar de ocasionais desacordos”[4]
Armínio também elevava os escritos
de Aquino à “mais elevada opinião”, sendo um costume seu elogiar os acertos dos
seus escritores favoritos (até exageradamente, poderia se dizer). No entanto, sempre
deixava claro a existência de discordâncias em alguns aspectos teológicos, tal
como ocorre no
caso
do seu elogio a Calvino.
3. Armínio mostra não concordar com Calvino e Beza em suas cartas a Francis Junius, através das quais debateram sobre a predestinação, e também na sua declaração de sentimentos
3. Armínio mostra não concordar com Calvino e Beza em suas cartas a Francis Junius, através das quais debateram sobre a predestinação, e também na sua declaração de sentimentos
É muito importante que se demonstre
que Armínio discordava de Calvino em vários pontos, principalmente no tocante à
questão da predestinação e, por isso, não se deve interpretar o elogio de
Armínio a Calvino de modo equivocado, como se aquele estivesse falando que
concordava totalmente com este. Em
sua carta a Junius, Armínio mostra que existem três tipos de visões sobre o
tema da predestinação, colocando o calvinismo de Calvino e Beza como a primeira
visão. Esta observação é importante, pois os defensores da “calvinicidade” de
Armínio costumam dizer que o calvinismo que Armínio atacava na sua “declaração
de sentimentos” seria na verdade a visão de Beza e não a de Calvino. Porém, o
texto abaixo prova que não é cabível tal afirmação, a saber:
“Vejo,
então, mui reconhecido senhor, que há três perspectivas com referência a este tema
[a predestinação], que têm seus defensores entre os doutores da nossa igreja. A
primeira é a de Calvino a Beza; a segunda é a de Tomás de Aquino e seus
seguidores; e a terceira é a de Agostinho, e os que concordam com ele. Todas
concordam no seguinte: que todas defendem, igualmente, que Deus, por um decreto
eterno e imutável, decidiu conceder a certos homens, e não a outros, a vida
eterna e sobrenatural, e os meios que são a preparação eficaz e necessária para
a obtenção dessa vida. [5]”
No texto acima, vê-se que Armínio
apresenta três tipos de visões sobre a predestinação, que são a visão de
Calvino e Beza, Aquino e seus seguidores e a visão de Agostinho e seus
concordantes. Sobre a visão de Calvino e Beza após analisa-la, Armínio tece a
seguinte conclusão:
“Com
referência à justiça, observamos que é, realmente, muito verdadeiro que ela
pode ocorrer, e pode ser exercida com relação aos que não são pecadores. Pois é
ela que traz a recompensa, não somente para a conduta pecaminosa, mas também
para a conduta justa. Mas por que não se pode deduzir, com base nessas coisas
que o senhor assim considera que a existência necessária do pecado não pode ser
concluída, nem mesmo da declaração necessária da misericórdia e da justiça de
Deus, uma vez que ambas, consideradas sob certa luz, podem ser exercidas com
relação aos que não são pecadores. Desta maneira, a ordem de predestinação
estabelecida por Calvino e Beza é totalmente derrubada.”[6]
Armínio está dizendo neste texto que o
fato de Deus salvar e conceder bênçãos aos que não resistirem a sua graça é um
ato tanto da Sua justiça quanto da Sua misericórdia e, portanto, ambas podem
ser exercidas sobre pessoas justificadas (salvas) e pecadoras contumazes (e não
necessariamente sobre estas, as não salvas, apenas). Ora, isto derriba a ordem
da predestinação de Calvino e Beza. Este é apenas um dos muitos exemplos das
discordâncias existentes entre Armínio com Calvino. Além disso, podemos ver
mais discordâncias deste tipo na “Declaração de Sentimentos”, na qual Armínio
faz uma série de críticas à predestinação nos moldes calvinistas, a saber:
- Repugnante à natureza de Deus;
- Repugnante à natureza de Deus;
- Repugnante à sabedoria de Deus;
- Repugnante à justiça de Deus;
- Repugnante à bondade de Deus;
- Contrária à natureza do homem;
- Inconsistente com a imagem divina;
- Incompatível com o livre-arbítrio;
- Diametralmente oposta ao ato da
criação;
- Uma hostilidade aberta contra a
natureza da vida eterna;
- Prejudicial à glória de Deus;
- Altamente desonrosa a Jesus Cristo;
- Prejudicial para a salvação dos
homens;
- Inversora da ordem do Evangelho de
Jesus Cristo;
- Uma hostilidade aberta contra o
ministério do Evangelho[7]
Poderiam ser citados vários outros
exemplos de como Armínio rejeitava o calvinismo, mas isto já seria o suficiente
para provar-se que, mesmo tendo citado a Calvino, Armínio discordava dele em
vários pontos, principalmente no tocante à sua soteriologia.
Conclusões
Deve-se apresentar sempre os textos em
seus respectivos contextos, de modo honesto, a fim de se evitar deturpações e
mal-entendidos dos escritos de outrem, cujo resultado poderia ser o suporte de
uma determinada visão teológica bastante distinta daquela que havia sido
proposta pelos autores originais das citações utilizadas. Desta forma,
demonstrou-se o engano cometido por parte de alguns blogs (textos) calvinistas
que, ao terem pinçado partes descontextualizadas dos textos de Armínio,
acabaram distorcendo o seu posicionamento soteriológico. De fato, não se pode comprovar
a “calvinicidade” de Armínio pelo simples fato de ele haver elogiado a Calvino
na sua obra teológica. Sendo assim,
adverte-se os leitores para que, ao lerem quaisquer citações de quaisquer
autores, busquem, na medida do possível, acessar os textos citados
integralmente (ou ao menos dentro de um contexto mais amplo), a fim de que não
venham a tirar conclusões errôneas dos mesmos, em especial se tais conclusões
fizerem referência a assuntos polêmicos, como no caso das soteriologias
arminianas e calvinistas.
A paz de Cristo!
[1] Carta a
Egbertsz, 3 de Maio de 1607; Ep.Ecc., numero 101. Citado em Bengs, Carl. Armínio,
Um estudo da Reforma Holandesa, página
338.
[2] http://emdefesadagraca.blogspot.com.br/2011/01/faca-como-Armínio-leia-calvino.html,
acesso em 22/03/2017. http://bereianos.blogspot.com.br/2013/04/arminianos-oucam-Armínio.html#.U7GjqahdXTo,
acesso na mesma data.
[4] Ibird
[5] Obras de
Armínio II, CPAD, edição de 2015 pagina 16.
[6] Ibird,
pag. 33
[7] As Obras
de Armínio I , CPAD, 2015, p. 204-219
[i] O
Bürgermeister (aportuguesado Burgomestre) é o detentor do poder executivo no
nível comunal em países como Alemanha, Áustria, Bélgica, Hungria, Luxemburgo,
Países Baixos e Polônia, que equivale ao cargo de Presidente da Câmara em
Portugal ou Prefeito no Brasil.
[ii] Dr. Sebastian
Egbertsz, conhecido mundialmente por sua obra em anatomia “The Osteology Lesson”.
[iii] um
teólogo holandês (1551-1608)
[iv] “Defesa
da Graça” e Bereianos
parabéns pela honestidade do texto.
ResponderExcluir"Teria Armínio considerado a Calvino como sendo teologicamente infalível? Para vários blogs e sites calvinistas a resposta é sim!"
ResponderExcluirNenhum calvinista (e olha que eu sou) de bom senso afirma infalibilidade em Calvino. Afirmamos a infalibilidade das Escrituras. Por favor, meu irmão, escreva seus artigos com piedade e autenticidade.
Ola, eu disse para "SITES" e outra nao disse que os calvinistas achavam Calvino infalível, mas que "consideram que para Arminio ele era infalível". Releia o texto por favor...
ExcluirExcelente.
ResponderExcluir