quarta-feira, 19 de abril de 2017

Armínio calvinista? Uma análise dos argumentos que tentam provar o suposto calvinismo de Armínio (Parte 3). O elogio de Armínio a Calvino prova que Armínio seria um calvinista?


Texto: Pr. Anderson de Paula
Revisão: Irmãos Jefferson G. Acunha-Acuña  e Thiago Fidelis


Um dos argumentos mais usados para tentar provar que Armínio era de fato um calvinista é o elogio feito a Calvino na carta endereçada ao seu amigo burgomestre[i] Sebastian Egbertsz[ii]. É muito fácil achar vários blogs e sites que entendem ser essa uma prova cabal da “calvinicidade” de Armínio, pois alguns chegam a dizer o seguinte: “Arminianos, leiam Armíno...”, antes de citarem o texto da carta supracitada. No entanto, será que tal argumento procederia? Teria Armínio considerado a Calvino como sendo teologicamente infalível? Para vários blogs e sites calvinistas a resposta é sim! Nós, porém, discordamos disto e vamos mostrar que é bem fácil refutar tal alegação. Vamos começar apresentando a maneira como estes blogs e sites citam a referida carta, como os maiores especialistas em Armínio entendem o seu elogio a Calvino, fazendo depois uma análise deste texto de Armínio.

1. Como o texto é usado em blogs e sites calvinistas?

            Para que o leitor possa entender melhor como é apresentado o texto de Armínio por alguns sites e blogs calvinistas, é necessário conhecê-lo antes integralmente, a saber:

            “Longe disso, após a leitura da Bíblia, que eu vigorosamente inculco, e mais do que qualquer outra (como toda a Universidade, de fato, a consciência de meus colegas testificará), eu recomendo que os Comentários de Calvino sejam lidos, a quem eu louvo em termos mais elevados do que o próprio Helmichius[iii], conforme ele me confessou, sempre fez. Pois eu afirmo que na interpretação das Escrituras Calvino é incomparável, e que seus comentários devem ser mais valorizados do que qualquer coisa que nos foi passado nos escritos dos Pais. Tanto é assim que eu lhe concedo um espirito de profecia no qual ele permanece distinto a cima dos outros, a cima da maioria, de fato, a cima de todos. Suas Institutas, no que diz respeito aos lugares comuns (loci communes), eu declaro que seja lida após o Catecismo como uma explicação mais abrangente. Mas aqui eu acrescento com discriminação, conforme os escritos de todos os homens devem ser lidos[1].”

            Tendo conhecimento da citação de Armínio, poder-se-á facilmente ver que o uso desta citação em blogs e sites calvinistas não representa a totalidade do pensamento arminiano sobre os escritos de Calvino. A fim de defenderem os seus pontos de vista, certos blogs[iv] apresentam a citação acima de forma parcial, a saber:

            "Eu os aconselho a ler os comentários de Calvino, a quem confiro maior louvor do que Helmichius [um teólogo holandês (1551-1608)] jamais fez, como ele próprio me confessou. Pois eu digo a eles, que seus comentários devem ser mantidos em maior estima, do que tudo que nos é entregue nos escritos dos Pais Cristãos Antigos: De forma que, em um certo eminente Espírito de Profecia, dou a proeminência para ele além da maioria dos outros, de fato além de todos eles."[2]

            Ao citar o texto de Armínio de forma parcial, passa-se a impressão de que Armínio estaria elogiando demasiadamente a Calvino, levando-se a crer de que Armínio não teria feito nenhuma ressalva ou advertência à leitura indiscriminada de Calvino. Note-se que a parte ocultada do texto foi a seguinte:

            “Suas Institutas, no que diz respeito aos lugares comuns (loci communes), eu declaro que seja lida após o Catecismo como uma explicação mais abrangente. Mas aqui eu acrescento com discriminação, conforme os escritos de todos os homens devem ser lidos.”

            Pode-se, então, perguntar qual o motivo de haver-se ocultado justamente a conclusão do pensamento de Armínio? Ora, pela sua conclusão fica claro que ele não concordava com Calvino em tudo e tampouco o considerava infalível ou superior aos demais teólogos de renome, tendo aconselhado que se tomasse cuidado na leitura de suas Institutas. A resposta mais provável é que assim o teriam feito para embasar o argumento de que Armínio concordava com Calvino, ao qual considerava superior aos demais, não havendo discordância alguma entre ambos os teólogos.
           

2. A visão dos especialistas em Armínio sobre o referido elogio

           
            É muito importante ressaltar que os maiores especialistas em Armínio discordam que aquele elogio torne Armínio calvinista, afirmando que, na verdade, Armínio era ambivalente com respeito a Calvino, pois não concordava com tudo quanto o mesmo havia escrito. Armínio ensinava realmente que Calvino era um ótimo comentarista e nada mais. Deve-se considerar que naquela época ainda não existiam muitos comentários bíblicos, o que pode ser considerado como sendo um dos motivos de tal ambivalência. Armínio indica os escritos de Calvino, mas com ressalvas. É muito claro que, para Armínio, João Calvino deveria ser lido como qualquer homem deve ser lido, haja visto que todos os homens poderão errar (e de fato erram, a não ser que tenham escrito algo sob inspiração divina, como havia sucedido com os autores bíblicos). Este é o entendimento de Stanglin e Thomas H. Mccall acerca do texto em questão:

            “Em uma carta de 1607, Armínio nega a acusação de que ele recomenda a seus alunos que leiam os jesuítas em vez de lerem os autores reformados. Antes, ele reivindica que indica os comentários de Calvino acima de todas as outras obras sobre a Bíblia, pois elas contêm um “certo espírito de profecia”. Além disso, as Institutas da Religião Cristã de Calvino deveriam ser lidas após o Catecismo (de Heildeberg) como uma explicação mais plena dela. Ele então acrescenta que todas as obras de Calvino, assim como todas as obras humanas, devem ser lidas com cautela. Armínio é ambivalente em seu endosso de Calvino. Seu respeito pelos comentários de Calvino está claro. Ao mesmo tempo, embora ele recomende as Institutas, ele não reivindica concordância total com todo seu conteúdo, mas apenas recomenda o livro especificamente como um suplemento para o catecismo”[3]

            De fato, estes autores contextualizam a carta, demonstrando que Armínio realmente indicava a leitura de Calvino, porém, afirmam que ele não concordava com tudo quanto Calvino escrevia, recomendando uma certa cautela ao ler-se as suas Institutas. Nota-se que Armínio sabia reter o que existia de melhor em cada escritor e rejeitar o que lhe parecesse contraditório às Escrituras. Pode-se comparar este elogio ao elogio que Armínio fizera a Tomas de Aquino, sobre quem dissera o seguinte:

 “... cuja habilidade e erudição eu tenho a mais elevada opinião, apesar de ocasionais desacordos”[4]

            Armínio também elevava os escritos de Aquino à “mais elevada opinião”, sendo um costume seu elogiar os acertos dos seus escritores favoritos (até exageradamente, poderia se dizer). No entanto, sempre deixava claro a existência de discordâncias em alguns aspectos teológicos, tal como ocorre no
caso do seu elogio a Calvino.

3. Armínio mostra não concordar com Calvino e Beza em suas cartas a Francis Junius, através das quais debateram sobre a predestinação, e também na sua declaração de sentimentos

É muito importante que se demonstre que Armínio discordava de Calvino em vários pontos, principalmente no tocante à questão da predestinação e, por isso, não se deve interpretar o elogio de Armínio a Calvino de modo equivocado, como se aquele estivesse falando que concordava totalmente com este. Em sua carta a Junius, Armínio mostra que existem três tipos de visões sobre o tema da predestinação, colocando o calvinismo de Calvino e Beza como a primeira visão. Esta observação é importante, pois os defensores da “calvinicidade” de Armínio costumam dizer que o calvinismo que Armínio atacava na sua “declaração de sentimentos” seria na verdade a visão de Beza e não a de Calvino. Porém, o texto abaixo prova que não é cabível tal afirmação, a saber:

“Vejo, então, mui reconhecido senhor, que há três perspectivas com referência a este tema [a predestinação], que têm seus defensores entre os doutores da nossa igreja. A primeira é a de Calvino a Beza; a segunda é a de Tomás de Aquino e seus seguidores; e a terceira é a de Agostinho, e os que concordam com ele. Todas concordam no seguinte: que todas defendem, igualmente, que Deus, por um decreto eterno e imutável, decidiu conceder a certos homens, e não a outros, a vida eterna e sobrenatural, e os meios que são a preparação eficaz e necessária para a obtenção dessa vida. [5]

No texto acima, vê-se que Armínio apresenta três tipos de visões sobre a predestinação, que são a visão de Calvino e Beza, Aquino e seus seguidores e a visão de Agostinho e seus concordantes. Sobre a visão de Calvino e Beza após analisa-la, Armínio tece a seguinte conclusão:

“Com referência à justiça, observamos que é, realmente, muito verdadeiro que ela pode ocorrer, e pode ser exercida com relação aos que não são pecadores. Pois é ela que traz a recompensa, não somente para a conduta pecaminosa, mas também para a conduta justa. Mas por que não se pode deduzir, com base nessas coisas que o senhor assim considera que a existência necessária do pecado não pode ser concluída, nem mesmo da declaração necessária da misericórdia e da justiça de Deus, uma vez que ambas, consideradas sob certa luz, podem ser exercidas com relação aos que não são pecadores. Desta maneira, a ordem de predestinação estabelecida por Calvino e Beza é totalmente derrubada.”[6]

Armínio está dizendo neste texto que o fato de Deus salvar e conceder bênçãos aos que não resistirem a sua graça é um ato tanto da Sua justiça quanto da Sua misericórdia e, portanto, ambas podem ser exercidas sobre pessoas justificadas (salvas) e pecadoras contumazes (e não necessariamente sobre estas, as não salvas, apenas). Ora, isto derriba a ordem da predestinação de Calvino e Beza. Este é apenas um dos muitos exemplos das discordâncias existentes entre Armínio com Calvino. Além disso, podemos ver mais discordâncias deste tipo na “Declaração de Sentimentos”, na qual Armínio faz uma série de críticas à predestinação nos moldes calvinistas, a saber:

           - Repugnante à natureza de Deus;
- Repugnante à sabedoria de Deus;
- Repugnante à justiça de Deus;
- Repugnante à bondade de Deus;
- Contrária à natureza do homem;
- Inconsistente com a imagem divina;
- Incompatível com o livre-arbítrio;
- Diametralmente oposta ao ato da criação;
- Uma hostilidade aberta contra a natureza da vida eterna;
- Prejudicial à glória de Deus;
- Altamente desonrosa a Jesus Cristo;
- Prejudicial para a salvação dos homens;
- Inversora da ordem do Evangelho de Jesus Cristo;
- Uma hostilidade aberta contra o ministério do Evangelho[7]

Poderiam ser citados vários outros exemplos de como Armínio rejeitava o calvinismo, mas isto já seria o suficiente para provar-se que, mesmo tendo citado a Calvino, Armínio discordava dele em vários pontos, principalmente no tocante à sua soteriologia.


Conclusões

Deve-se apresentar sempre os textos em seus respectivos contextos, de modo honesto, a fim de se evitar deturpações e mal-entendidos dos escritos de outrem, cujo resultado poderia ser o suporte de uma determinada visão teológica bastante distinta daquela que havia sido proposta pelos autores originais das citações utilizadas. Desta forma, demonstrou-se o engano cometido por parte de alguns blogs (textos) calvinistas que, ao terem pinçado partes descontextualizadas dos textos de Armínio, acabaram distorcendo o seu posicionamento soteriológico. De fato, não se pode comprovar a “calvinicidade” de Armínio pelo simples fato de ele haver elogiado a Calvino na sua obra teológica.  Sendo assim, adverte-se os leitores para que, ao lerem quaisquer citações de quaisquer autores, busquem, na medida do possível, acessar os textos citados integralmente (ou ao menos dentro de um contexto mais amplo), a fim de que não venham a tirar conclusões errôneas dos mesmos, em especial se tais conclusões fizerem referência a assuntos polêmicos, como no caso das soteriologias arminianas e calvinistas.

A paz de Cristo!    



[1] Carta a Egbertsz, 3 de Maio de 1607; Ep.Ecc., numero 101. Citado em Bengs, Carl. Armínio, Um estudo da  Reforma Holandesa, página 338.
[2] http://emdefesadagraca.blogspot.com.br/2011/01/faca-como-Armínio-leia-calvino.html, acesso em 22/03/2017. http://bereianos.blogspot.com.br/2013/04/arminianos-oucam-Armínio.html#.U7GjqahdXTo, acesso na mesma data.
[3] Jacob Arminus: Theologian of Grace, p. 43.44.
[4] Ibird
[5] Obras de Armínio II, CPAD, edição de 2015 pagina 16.
[6] Ibird, pag. 33
[7] As Obras de Armínio I , CPAD, 2015, p. 204-219




[i] O Bürgermeister (aportuguesado Burgomestre) é o detentor do poder executivo no nível comunal em países como Alemanha, Áustria, Bélgica, Hungria, Luxemburgo, Países Baixos e Polônia, que equivale ao cargo de Presidente da Câmara em Portugal ou Prefeito no Brasil.
[ii] Dr. Sebastian Egbertsz, conhecido mundialmente por sua obra em anatomia “The Osteology Lesson”.
[iii] um teólogo holandês (1551-1608)
[iv] “Defesa da Graça” e Bereianos

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